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O caciquismo: entre o vício e a virtude na política partidária contemporânea

"A política é uma actividade em que as imperfeições humanas são inevitáveis, mas não intransponíveis."

Por Ponto Radar04 dez, 2024 PontoRadar.com

Imagem gerada por AI.

Na tradição política portuguesa, o caciquismo é frequentemente evocado como um conceito pejorativo, associado à manipulação de influências e ao controle dos aparelhos partidários por figuras locais com poder desproporcionado. Contudo, como qualquer fenómeno político, o caciquismo é mais complexo do que a caricatura que frequentemente se lhe associa, e merece uma análise mais profunda, particularmente à luz dos desafios que as democracias liberais enfrentam hoje.

É inegável que o caciquismo, entendido como a concentração de poder nas mãos de líderes locais que dominam redes de apoio e influência, pode corroer a transparência e a meritocracia no seio dos partidos políticos. Este fenómeno tende a transformar as organizações partidárias em máquinas de distribuição de favores, afastando-as dos seus ideais fundadores e da sua função enquanto mediadores entre a sociedade civil e o poder central. Esta degeneração, além de empobrecer o debate interno, cria uma barreira entre os partidos e a população, alimentando a alienação e o populismo.

No entanto, como tantas vezes acontece na política, a realidade raramente se divide entre o bem e o mal absolutos. O caciquismo, quando analisado com frieza, pode também ser visto como uma expressão pragmática do poder político. Os líderes locais, que conhecem de perto as dinâmicas das suas comunidades e dominam a arte de mobilizar recursos humanos e materiais, são essenciais para a operacionalização das estruturas partidárias. Não por acaso, os partidos com maior implantação territorial e redes de caciques eficazes são, frequentemente, aqueles que conseguem sobreviver às flutuações eleitorais e construir projetos de longo prazo.

Neste sentido, o caciquismo, na sua versão moderada, pode ser interpretado como uma manifestação da política no seu estado mais humano e comunitário: uma relação de proximidade entre eleitores e eleitos, baseada em laços de confiança e na capacidade de resolver problemas concretos. É aqui que reside a sua virtude, embora frequentemente obscurecida pelos excessos e pelos abusos que acompanham o fenómeno.

Para as democracias contemporâneas, o desafio não está em erradicar o caciquismo – uma tarefa, de resto, utópica –, mas em moldá-lo. É imperativo criar mecanismos dentro dos partidos que promovam a renovação e limitem a concentração de poder, assegurando que os caciques sirvam os interesses da comunidade e do partido, e não apenas os seus próprios. Mais ainda, cabe aos líderes nacionais a responsabilidade de garantir que as bases partidárias não se tornem reféns de dinâmicas locais que as desvirtuem.

O combate ao caciquismo não pode ser confundido com a centralização desmedida, que aliena os partidos das suas raízes populares. A solução está no equilíbrio: reconhecer a importância do caciquismo como um fenómeno natural e, até certo ponto, necessário, enquanto se luta contra os seus vícios mais corrosivos.

A política é uma actividade em que as imperfeições humanas são inevitáveis, mas não intransponíveis. O caciquismo é, ao mesmo tempo, uma expressão das fraquezas e das forças do sistema partidário. Resta aos líderes que se preocupam com a preservação da democracia liberal encontrar formas de aproveitar o seu potencial sem comprometer os valores que devem guiar a vida pública. Afinal, é no confronto com os seus próprios limites que a política encontra a sua maior virtude.