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A igualdade e o mérito

"Se cada um de nós é único, cada um já nasce diferente do outro"

Por João Pereira da Silva21 jun, 2024 PontoRadar.com

Igualdade e Mérito
Imagem criada por inteligência artificial
A igualdade é um valor social, não-natural e moral que emerge da cultura humana e não da natureza onde não existe. A motivação prática para a exercermos de modo institucional é o que isso representa em termos de sucesso social e, em consequência, individual.

Na Natureza não há dois objectos iguais ou dois seres vivos iguais. Apesar de uma pedra de 2 cm de diâmetro ser semelhante a outra com os mesmos 2 cm e feita do mesmo material, as duas têm diferenças que tornam cada uma num objecto único. O mesmo se aplica a todos os seres vivos.

Na Humanidade, desde que o somos e até ao fim da mesma, considerando todos os nascidos e todos os que irão morrer até acabarmos como espécie, nunca houve ou haverá duas pessoas iguais. Somos semelhantes, parecidos uns com os outros, podemos mesmo partilhar código genético a 100% tal como no caso do gêmeos idênticos, vindos do mesmo óvulo e do mesmo espermatozóide, e mesmo assim, dois gémeos idênticos, apesar de terem impressões digitais similares têm-nas diferentes. Assim que o óvulo fertilizado se divide no útero, a interacção com o ambiente materno diferencia os indivíduos tornando único cada um.

Não existindo dois seres humanos iguais e sendo a igualdade biológica impossível, sabemos com certeza que todos somos diferentes e que isso se manifesta física e intelectualmente.

As diferenças físicas dão-nos maior ou menor aptidão desportiva, maior ou menor beleza segundo os padrões de atratividade em voga, mais ou menos capacidade para enfrentar desafios diferentes. Uns têm grande capacidade para o futebol, outros para o tênis, outros ainda não gostam nada de desporto e preferem o descanso ou actividades intelectuais.

As diferenças intelectuais dão-nos interesses lúdicos, profissionais e sociais diferentes. Uns apreciam xadrez, alguns jogos de sorte, e outros ainda podem gostar de contemplar verdades filosóficas ou científicas. Algumas pessoas têm poucos interesses intelectuais. Outras não têm quaisquer. Alguns vivem para a intelectualidade e retiram grande prazer do estudo, da contemplação e da análise.

Concluindo que a igualdade biológica objectivamente não existe, pensemos nas consequências práticas que essa desigualdade implica. Se cada um de nós é único, cada um já nasce diferente do outro, as diferenças são inevitáveis e vão reflectir-se na nossa vida social, familiar e profissional. Não temos como fugir a isso.

Porém, há correntes culturais que entendem que a igualdade humana pode ser atingida via decreto estatal, declarando que somos todos iguais e pretendendo atingir essa igualdade artificial através da atribuição de direitos sociais legislados, garantidos e reforçados pelo Estado. Como se a partir do momento em que as pessoas passam a participar na sociedade - à nascença - a Natureza se possa contrariar através de uma equalização abstracta vertida em Lei.

É evidente que o código genético dos seres humanos não se altera por decreto legal e que objectivamente as pessoas continuam e sempre o serão, diferentes.

Essa declaração abstrata de Igualdade por parte de movimentos políticos tem um objectivo específico: que todos tenham o mesmo status social, econômico e político (no sentido de poder pessoal e social). Naturalmente, nunca em qualquer sociedade humana esse tipo de igualdade foi atingido. Tentou-se por diversas vezes declarar a Igualdade, mas sempre que se o fez os resultados foram desastrosos para quase todos os envolvidos, menos para alguns que se alçaram ao topo da hierarquia social usando e pregando princípios pretensamente “humanistas” para ajudar a garantir a sua diferenciação pessoal de status social, econômico e político. É famosa a frase de George Orwell: “todos os porcos são iguais, mas há uns mais iguais que outros”.

Um dos exemplos sociais de experiência em nome da igualdade legal é o caso da Revolução francesa, onde sob os motes da “Liberdade, Igualdade, e Fraternidade”, se matou e torturou mais de um milhão de pessoas, estabelecendo-se um regime autoritário e não democrático de suma crueldade.

Aliás, todas as experiências colectivistas feitas em nome da Igualdade sempre degeneraram em crueldade, morte, tortura, redução das liberdades, autoritarismo e, diga-se sem qualquer hesitação, desigualdade extrema. Não há um único caso de sucesso na História humana recente e antiga, de uma sociedade ou Estado estabelecidos em nome da Igualdade que a tenha praticado com sucesso e sem causar extremo sofrimento com enormes quantidades de mortes de seres humanos por parte de outros seres humanos que se declaram “iluminados”, “bondosos”, e “justos” enquanto praticam actos de horror em nome do idealismo utópico.

O que faz sentido, tem utilidade e é rigorosamente necessário numa sociedade livre é que as pessoas sejam semelhantes perante a Lei, ou seja, tratadas do mesmo modo independentemente da sua nascença, status sócio-econômico ou político. A Justiça deve proporcionar o mesmo tratamento a qualquer cidadão independentemente da sua origem e status social em plena Igualdade perante a Lei - princípio basilar de Justiça - que de facto deve ser incentivado e praticado para o bem de todos os diferentes na sua interacção social e, sobretudo, na sua relação com o Estado onde os abusos podem ser gravosos.

Se há algo em que o ser humano pode ser considerado semelhante a muitos outros é que cada um dos indivíduos tem, em maior ou menor dose: egoísmo. Tal como é mais ou menos inteligente e capaz de manipular terceiros para satisfação dos seus interesses primários e exclusivos, em primeiro lugar pessoais, depois familiares e por último sociais, de onde, participando em grupos e organizações, extrai mais força ou recursos para fins individuais tais como: reconhecimento de mérito, ganhos econômicos ou de status, conforto e auto-satisfação.

Sendo assim, é a Igualdade um valor? Certamente, não a igualdade como uma realidade natural ao ser humano, mas sim como algo que devemos praticar (uma escolha moral) na nossa relação com os outros. Um acto de vontade, de respeito pelo outro, de cidadania ou de participação social, em que reconhecemos igual tratamento a todos os indivíduos diferentes entre si, para ajudarmos a garantir que nos comportamos com a melhor justiça social (entendida como a justeza na relação entre indivíduos e entre estes e os que representam o Estado).

Note-se algo de relevante na natureza humana: todos temos tendência a separar, classificar e hierarquizar as pessoas que conhecemos e de que nos falam. As estrelas pop, os socialite, os grandes homens e mulheres de grandes feitos, são avaliados, julgados, e atribuímos-lhes um status que consideramos subjectivamente objectivo sobre o que cada uma dessas pessoas representa em termos de relevância social. E temos tendência inata a tratar diferentemente as pessoas em função do status atribuído que lhes reconhecemos.

Portanto, mesmo o esforço moral de tratamento de todos em igualdade, nos é não-natural e imposto por um conceito abstracto de justiça que resulta de evolução cultural ao longo de milhares de anos, em que valorizamos o tratar igualmente como mais importante do que o reconhecimento das diferenças. Assim tem de fazer um juíz, um profissional formado e pago para praticar a igualdade de tratamento, assim deve fazer cada um de nós para garantir o reforço social da Igualdade perante a Lei.

Relativamente à Igualdade, concluímos então que é um valor social, não-natural e moral que emerge da cultura humana e não da natureza onde não existe. A motivação prática para a exercermos de modo institucional é o que isso representa em termos de sucesso social e, em consequência, individual. Se tivermos uma sociedade justa e com tratamento baseado na Igualdade na Justiça para o que é naturalmente diferente, isso resulta melhor para todos e para cada um. Protegemos (ainda outra abstração): o direito ‘natural’ de cada indivíduo à sua propriedade, liberdade e vida, e reforçamos, em consequência, o sucesso do grupo.

Como se articulam então a Igualdade e o Mérito?

O mérito é o acto formal de reconhecimento de valor pelo esforço individual. Ou seja, de reconhecermos alguém como positiva ou negativamente diferente de outrem. De, com parâmetros mais ou menos objectivos, atribuirmos valores diferentes a pessoas ou actos. Como, tratando com igualdade, podemos, e devemos avaliar e reconhecer o mérito que forçosamente implica desigualdade na avaliação e valorização (atribuição de notas, por exemplo)? É isso importante?

A questão central pela qual a Igualdade - não de resultados que essa é impossível de garantir dada a diferença de base entre todos - a única que a sociedade pode, em esforço voluntário e social tentar garantir é a de Oportunidades. Porquê? Por causa da Competição. Esta é natural,querendo dizer intrínseca aos seres biológicos que somos. Os irmãos concorrem pela atenção dos pais, os herdeiros concorrem pela herança dos mesmos, competimos por promoções nas estruturas produtivas onde nos inserimos, etc.. Não há como fugir e a competição não só é natural e necessária, mas também desejável para a realização humana e social. Realizamo-nos pelo esforço despendido, pelo resultado que obtemos, e pelo reconhecimento organizacional ou social da aplicação do esforço em qualquer missão que decidimos cumprir ou nos é confiada.

Voltando à Justiça, antes referida, trata-se então do reconhecimento do esforço e do mérito. Para que o reconhecimento seja justo é essencial que na avaliação seja usada como critério a Igualdade de Oportunidades. Por exemplo, que o mais independentemente possível da origem sócio-económica de um aluno de qualquer escola, o método de avaliação seja objectivo e igual para todos. Naturalmente o aluno com mais abundância de recursos familiares tem favorecimento à partida, no início da corrida, mas o de menores recursos deve ter a possibilidade de, pelo esforço (que terá de ser superior, sem dúvida) ser submetido à mesma metodologia de avaliação que o mais afortunado de início. Se dermos avaliação diferente em função dos pontos de partida, estamos a subverter o reconhecimento do mérito. É isto injusto quando um é obrigado a maior esforço do que outro?

Injusta é a utilização de metodologias diferentes para o julgamento de alunos diferentes e a complexidade de um sistema de avaliação correspondente é de tão grande exigência conceptual que se torna formalmente impraticável. O único modo de garantirmos semelhança nos resultados, mesmo tendo o sistema a exigir esforço desigual, é garantirmos que a avaliação e selecção sejam iguais. Porquê? Para que de seguida e na progressão de carreira de dois alunos, antes diferentes à partida, os mesmos tenham as mesmas oportunidades de desenvolvimento sócio-económico.

Note-se que o maior risco de desfavorecimento não se encontra nos métodos de avaliação objectivos do sistema de obtenção de conhecimento técnico, mas na selecção, p. ex. para empregos em função de contactos pessoais e familiares. É aqui que mais se viola o são princípio da Igualdade de Oportunidades, sobretudo, nos sistemas públicos de obtenção de trabalho, em concursos muitas vezes viciados à partida onde os candidatos vencedores são pré-conhecidos. Seria interessante fazer-se um estudo sobre a densidade das relações familiares em cargos e lugares de trabalho públicos.

Assim, é impossível anular desigualdades de nascença ou origem social, mas é possível reconhecer o mérito usando o princípio da Igualdade de Oportunidades e a elementar Justiça. Reconhecemos que é um objectivo utópico pensar-se que conseguimos forçar as organizações privadas a selecionar puramente em função do mérito. Haverá sempre quem pretenda favorecer laços de confiança, amigos, familiares ou pessoas recomendadas por terceiros, mas os custos de eventuais erros de selecção impendem sobre essas organizações e com o tempo e pela acumulação de erros parece-nos mais provável que as correções sejam naturalmente feitas em função da maximização de resultados (se o mercado for competitivo e aberto).

No sistema público, porém, devemos exigir a maior transparência e o cidadão deve sempre demandar a maior objectividade e reconhecimento de mérito na classificação e selecção. Só assim se consegue incentivar quem se esforça mais e a beneficiar o sistema por termos os melhores e mais capazes a contribuir.

O que sucede nos sistemas públicos é que neles impera o favorecimento por critérios de amizade, relação pessoal, partidária e o exemplo social transpira para a sociedade privada criando um clima de aceitação do não-reconhecimento do mérito e esforço individual que desencoraja os jovens e os força, ou a reduzir expectativas, ou a deixar o país, trocando-o por outros onde o esforço seja melhor reconhecido. Assim sendo a prática, arriscamos continuar a perder bons recursos, o que depois nos penaliza na inevitável competição internacional.

O ser humano responde a incentivos. A impulsos dados em determinado sentido pelo sistema, organização em que participa, pelos seus pares. A garantia de que o reconhecimento do mérito existe, e de que a igualdade de oportunidades é um valor social praticado, é o melhor incentivo de superação para quem quer melhorar a sua posição, rendimento, ou condições de desenvolvimento individual.

Beneficiando os indivíduos de um sistema que valoriza a justiça no reconhecimento do esforço, beneficiamos a sociedade.

Podemos então dizer que a igualdade e o mérito são valores cimeiros para a organização social e produtiva, mas que antes de podermos obter igualdade temos de procurar garantir que o mérito é aferido e reconhecido com justiça. Se o fizermos, a igualdade no tratamento, a de oportunidades - nunca a de resultados - será uma consequência natural.

Uma sociedade meritocrática, ou seja, baseada no reconhecimento do mérito e no valor primordial da igualdade de oportunidades é uma sociedade potencialmente mais feliz.